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A cidade começa a desaparecer

por Cinira d'Alva
Fotografia: Rua São Bento – Militão Augusto de Azevedo (Acervo Instituto Moreira Salles).

Cinira d’Alva é graduada em Arquitetura e Urbanismo. Atualmente explora a relação com a paisagem e a transcrição da experiência. Transcrever a experiência é uma coisa boa. Escrever enquanto nos tornamos. O texto é a máquina que se forma pra passar o recado do mundo. Quando entendeu a brincadeira percebeu que já vinha torcendo suas ferramentas em escrita. A arquitetura, o urbanismo, a cidade e a arte.


1.
meia dúzia de casas
de João de barro
em uma só árvore
em manhã tristíssima
em salvador
cabana cabana
boa tarde boa tarde
tarde boa
entre
você e eu
em belém

2.
gostamos de árvores pássaros cachorros
e pedras
mais ainda
do oiti
do gavião
dos cachorros de rua
e das pequenas pedras de rio assentadas em linha reta como fez a lina bo bardi no solar
do unhão em salvador
também do modo como os periquitos abrem as vagens da acácia
como se fizessem amor

3.
a gente nãos
papel caneta fortaleza e lágrimas
depois ainda a gente mar
areia sol praia do futuro
tudo isso e a gente incapaz de desistir
te amo
e às vezes precisaria acordar sem bom dia
amo você e sua coleção de pensamentos dos outros
a gente pragas da biosfera
a gente prisioneiros da linguagem
a gente a mercê dos hormônios
eu te amo e às vezes não tolero distração
ir dormir sem boa noite e isso você não entenderia

4.
quando os cheiros formam tecido
chega-se
as vozes cariocas cheias de frituras e vícios
os parentes
na foto de infância
atrás do pai que tirava as fotos
tão alheio quanto eles ao espanto da menina
ou menino?
é menina os pais respondiam
por ela que não penteava o cabelo
voltou à casa da mãe de m.
um quase rio de janeiro
as vozes cariocas cheias de frituras e vícios
os parentes
tão alheios quanto ela ao sorriso do menino
na foto de infância
ou menina?
é menino a mãe talvez tenha dito
as mãozinhas cruzadas
sobre as pernas
o cabelo escovado

5.
na distância aproveite
a liberdade da pele
faça crescer pelos
escute o baque da flor
a insistência da imagem
arco faca cavalo
monte e atravesse
garimpo olho memória
mergulhe com a pedra na mão
quando voltar aproveite
o vermelho breve
que a distância guarda
de mim pra você
de você pra mim
reconheça
qual pássaro canta
em belém
qual canta em salvador


Fotografia: Rua São Bento – Militão Augusto de Azevedo (Acervo Instituto Moreira Salles).

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